Popocatépetl

junho 11, 2010

Nunca tive dúvidas: o vulcão me chama.

Nem nunca tive dúvidas: um dia a hora – esta hora – chegaria.

E para ser sincero contigo, meu honorável inimigo, das engrenagens do tempo eu já conhecia esta data e esta hora: não era Água e Coelho, não era Grama e Serpente, nem era dia de entes rasteiros quaisquer, mas dia da Águia e do Jaguar, e a hora era a undécima, Sol em quase zênite.

Porque hás de convir que nossa vida aproxima-se do apogeu: eu vejo teu peito cheio de medalhas, tu vês minha coroa cheia de plumas. Nossos escudos sempre foram os mais brilhantes e, no meio de uma turba gigantesca de guerreiros em marcha veloz, a léguas de distância, eu te reconhecia e tu me reconhecias. Nós não nascemos príncipes, nós nos tornamos príncipes. Que mais precisaríamos provar aos deuses? Poucos são os homens que em nossa tenra idade chegaram onde nós já chegamos. Estou certo de que tudo o que advirá não passará de uma longa, tediosa e inescapável derrocada.

Honorável inimigo, nós já assistimos a muitas girândolas de homens-pássaros, nos jogos de Quetzacoátl jogamos juntos o caucho, já bebeste o chocolatl oferecido em minha casa e, lembro-me bem, por três vezes repetiste o maíz. Conheces meu pai, minha mãe, apresentei-te à minha mulher e meus filhos. Foste meu comparsa, meu amigo, meu confidente, e como eu admirava tua bravura, tua destreza, tua lealdade!

Se eu tivesse exata consciência do que viria, talvez não teria hoje meus olhos tão embotados, nem meu coração desse jeito, em brasas. Tu não te lembras então daquela noite em que fomos ter com o sacerdote? Todos os maus presságios que ouvimos me deixaram com frio na espinha por duas semanas… Lembras-te do que falara sobre os perniciosos demônios barbudos vindos do oeste? Dos monstros de seis patas e duas cabeças? Das inúmeras traições que nos atingiriam de todos os lados, como um mar de flechas? Mas diz-me: mesmo antevendo o pior, seria possível adivinhar uma desgraça tamanha insensata e infinita como a que tem sido? Seria possível supor que o Sol pararia de girar sobre nossas cabeças, que nosso Imperador seria humilhado e trucidado como um cervo em sacrifício, que nosso povo seria liquidado e pisoteado por uma horda de loucos demônios, ávidos engolidores de metal?

No entanto minha imaginação, por mais fértil que fosse e por mais premunida que estivesse, jamais poderia conceber que tu um dia poderias juntar-se aos demônios, compactuar com eles em troca de promessas vazias e honrarias que não valem a saliva de uma serpente! E finalmente, que pudesses um dia pensar em me trair como hoje o fazes… Mas as obras divinas somente trabalham acima de nossa compreensão.

A flecha que atingiu a dama-vulcão Iztaccíhuatl e a fez adormecer hoje me atinge. Não ouso blasfemar-te. A hora aproxima-se do zênite e é exatamente neste dia que o que tem de ser feito deve ser feito. E que seja feito por tuas mãos, nobre príncipe. Da borda do imenso Popocatépetl que vela pela amada adormecida, eu saltarei do mundo dos vivos e entrarei em rasante no mundo dos ares infinitos.

E tu, honorável inimigo, tu ficarás aqui em cima, sobre o vulcão, e velarás pelo meu voo.