Agora estou em pleno centro de Vitória, de posse do Uno branco, parado num semáforo. Do meu lado direito o porto, do lado esquerdo um pastor na calçada jorrando desaforos a tudo o que não considera cristão. Apenas dou a partida, escuto um transeunte gritando-lhe desaforos de volta, estes pronunciáveis.
Dizem que Vitória tem esse nome em homenagem à Nossa Senhora, que sempre topou carregar consigo qualquer toponímia ou qualificação. Mas há outra razão, mais envergonhada: comemora a infame e decisiva batalha contra os goytacazes, povo rançoso que não queria saber de amizades com portugas, ao contrário dos aimorés e dos tupiniquins. Todos tiveram, invariavelmente, o mesmo destino: foram dizimados e/ou expulsos de suas terras. Minto, não chamavam de suas essas terras já que não havia entre os aborígenes noção de propriedade tal como depreendemos da jus romana. Se houvesse entre eles também a noção da história, tal como nos ensina Heródoto, não haveriam de batizar este lugar com elementos da natureza locais, como sempre fizeram, mas sim com datas comemorativas em memória de abstrusos acontecimentos. É bem possível que, sendo este mundo tão somente um dos infinitos mundos existindo paralelamente, exista um outro em que a história seja exatamente a mesma do nosso, mas onde as coisas são chamadas pelo verdadeiro nome, sem a máscara do ultraje. Nesse mundo, essa cidade seria conhecida por seu exato antônimo.
Estaciono o carro diante da praça Costa Pereira. Ao sair do carro, uma multidão de engraxates em prontidão assegura-me do estado lastimável de meu único par preto. Um deles aponta para a placa de vaga reservada a idosos. Considero-me um, ao menos de alma; revido tergiversando com jocosos sinais gestuais. Ligo para meu parça, marco encontro na Garapa da Cidade, em frente ao Glória. Sugestionado pelo nome da bodega e pelo calor sumério, peço um caldo e sento-me diante do balcão. Mal beberico chega Renato, óculos escuros adereçando os cabelos e crachá em balanço sobre camisa encharcada de suor.
– Fala compadre! Beleza?
– Tudo ótimo. O ar-condicionado do cartório não está funcionando, por acaso?
– Pois é… O dono é um baita dum sovina; ganha rios de dinheiro e está há meses pra mandar consertar aquela porra!
– Aí fica difícil… Quer tomar alguma coisa?
– Vê uma garapa aqui pra mim, amigo. – diz Renato para o atendente. Você tá diferente, G***, mais vistoso, sei lá… Tá de rolo com alguém, né?
Evoco em silêncio um falso constrangimento, expilo ar pelas narinas e dou uma leve risada olhando para o lado. Renato não se intimida facilmente; replica:
– Você precisa me apresentar! Vamos tomar uma cerveja juntos!
– Veremos, veremos… Você conseguiu os documentos que eu te pedi?
– É impressionante como você foge do assunto! Se eu não te conhecesse, diria que você está escondendo alguma coisa…
– Não estou escondendo nada, só estou com pressa. Preciso entregar essa documentação amanhã sem falta.
– Então… Você sabe que esse nome que você me deu – Sr. Marchetti, não é? – o cara tem a ficha muito suja… É bem difícil conseguir fazer todo o limpa. Nunca vi tamanha capivara!
– Pois é, por isso que eu vim falar contigo, você sempre consegue resolver as maiores picas…
– Agradeço a preferência… Mas dessa vez o Edson, o menino que trabalha comigo, ficou cabreiro. Ele diz que a coisa pode agarrar pro nosso lado…
– Ah, qualé Renato! Não vem dar pra trás agora, fi! Isso aqui é só mais do mesmo pra vocês…
– É, mas ele tá pedindo um adianto aí pra concluir a parada. Tem que pagar um rapaz da auditoria…
Degluto o caldo. Sobe-me o sangue à cabeça. Ah, se eu não conheço esses caras! Falo calma e imperiosamente:
– Renato… meu pai sempre dizia: do couro sai a correia. Do couro a correia! Como é que eu vou botar algum antes de fechar o negócio? Você sabe como a coisa funciona! Quantas vezes a gente já trabalhou juntos? Quantas deram chabu? Segura sua cambada, cara! Esse é um negócio pra gente lavar a égua, bicho!
– Eu sei, eu sei… Mas nem todo mundo trabalha assim na confiança, vamos combinar, né G***! E esse rapaz da auditoria é novo, não tá ligado nas nossas ideias…
– Preciso da documentação toda amanhã cedo, senão perco o negócio. Você dê seus pulos, Renato!
– Ok, ok… Eu vou fazer o seguinte: vou conversar na boa com o cara e te retorno ainda hoje, pode ser? Ele consegue tirar o documento na hora, é só travar o sistema…
Deixo dinheiro no balcão, gesticulo ao libanês do caixa e seguro a mão de Renato, sacudindo-a à inglesa.
– Por favor, faça isso. Vou ficar aguardando sua ligação, hein?
– Pode deixar, parça, tamo junto! Você precisa ficar mais relax, cara!
Despeço-me e sigo em direção ao carro. De posse do Uno, sinto-me vivo. Costa Pereira é só um nome de praça, Jerônimo Monteiro um nome de avenida. Mesmo Carlos Gomes, com tudo o que fez, é só um nome de teatro. Já eu, sendo eu tão somente, estou vivo. Envio uma mensagem a Sílvia, que me responde prontamente. Estou vivo.