Fim das Tardes – Selva Morale (VI)

dezembro 6, 2016

Agora estou em pleno centro de Vitória, de posse do Uno branco, parado num semáforo. Do meu lado direito o porto, do lado esquerdo um pastor na calçada jorrando desaforos a tudo o que não considera cristão. Apenas dou a partida, escuto um transeunte gritando-lhe desaforos de volta, estes pronunciáveis.

Dizem que Vitória tem esse nome em homenagem à Nossa Senhora, que sempre topou carregar consigo qualquer toponímia ou qualificação. Mas há outra razão, mais envergonhada: comemora a infame e decisiva batalha contra os goytacazes, povo rançoso que não queria saber de amizades com portugas, ao contrário dos aimorés e dos tupiniquins. Todos tiveram, invariavelmente, o mesmo destino: foram dizimados e/ou expulsos de suas terras. Minto, não chamavam de suas essas terras já que não havia entre os aborígenes noção de propriedade tal como depreendemos da jus romana. Se houvesse entre eles também a noção da história, tal como nos ensina Heródoto, não haveriam de batizar este lugar com elementos da natureza locais, como sempre fizeram, mas sim com datas comemorativas em memória de abstrusos acontecimentos. É bem possível que, sendo este mundo tão somente um dos infinitos mundos existindo paralelamente, exista um outro em que a história seja exatamente a mesma do nosso, mas onde as coisas são chamadas pelo verdadeiro nome, sem a máscara do ultraje. Nesse mundo, essa cidade seria conhecida por seu exato antônimo.

Estaciono o carro diante da praça Costa Pereira. Ao sair do carro, uma multidão de engraxates em prontidão assegura-me do estado lastimável de meu único par preto. Um deles aponta para a placa de vaga reservada a idosos. Considero-me um, ao menos de alma; revido tergiversando com jocosos sinais gestuais. Ligo para meu parça, marco encontro na Garapa da Cidade, em frente ao Glória. Sugestionado pelo nome da bodega e pelo calor sumério, peço um caldo e sento-me diante do balcão. Mal beberico chega Renato, óculos escuros adereçando os cabelos e crachá em balanço sobre camisa encharcada de suor.

– Fala compadre! Beleza?

– Tudo ótimo. O ar-condicionado do cartório não está funcionando, por acaso?

– Pois é… O dono é um baita dum sovina; ganha rios de dinheiro e está há meses pra mandar consertar aquela porra!

– Aí fica difícil… Quer tomar alguma coisa?

– Vê uma garapa aqui pra mim, amigo. – diz Renato para o atendente. Você tá diferente, G***, mais vistoso, sei lá… Tá de rolo com alguém, né?

Evoco em silêncio um falso constrangimento, expilo ar pelas narinas e dou uma leve risada olhando para o lado. Renato não se intimida facilmente; replica:

– Você precisa me apresentar! Vamos tomar uma cerveja juntos!

– Veremos, veremos… Você conseguiu os documentos que eu te pedi?

– É impressionante como você foge do assunto! Se eu não te conhecesse, diria que você está escondendo alguma coisa…

– Não estou escondendo nada, só estou com pressa. Preciso entregar essa documentação amanhã sem falta.

– Então… Você sabe que esse nome que você me deu – Sr. Marchetti, não é? – o cara tem a ficha muito suja… É bem difícil conseguir fazer todo o limpa. Nunca vi tamanha capivara!

– Pois é, por isso que eu vim falar contigo, você sempre consegue resolver as maiores picas…

– Agradeço a preferência… Mas dessa vez o Edson, o menino que trabalha comigo, ficou cabreiro. Ele diz que a coisa pode agarrar pro nosso lado…

– Ah, qualé Renato! Não vem dar pra trás agora, fi! Isso aqui é só mais do mesmo pra vocês…

– É, mas ele tá pedindo um adianto aí pra concluir a parada. Tem que pagar um rapaz da auditoria…

Degluto o caldo. Sobe-me o sangue à cabeça. Ah, se eu não conheço esses caras! Falo calma e imperiosamente:

– Renato… meu pai sempre dizia: do couro sai a correia. Do couro a correia! Como é que eu vou botar algum antes de fechar o negócio? Você sabe como a coisa funciona! Quantas vezes a gente já trabalhou juntos? Quantas deram chabu? Segura sua cambada, cara! Esse é um negócio pra gente lavar a égua, bicho!

– Eu sei, eu sei… Mas nem todo mundo trabalha assim na confiança, vamos combinar, né G***! E esse rapaz da auditoria é novo, não tá ligado nas nossas ideias…

– Preciso da documentação toda amanhã cedo, senão perco o negócio. Você dê seus pulos, Renato!

– Ok, ok… Eu vou fazer o seguinte: vou conversar na boa com o cara e te retorno ainda hoje, pode ser? Ele consegue tirar o documento na hora, é só travar o sistema…

Deixo dinheiro no balcão, gesticulo ao libanês do caixa e seguro a mão de Renato, sacudindo-a à inglesa.

– Por favor, faça isso. Vou ficar aguardando sua ligação, hein?

– Pode deixar, parça, tamo junto! Você precisa ficar mais relax, cara!

Despeço-me e sigo em direção ao carro. De posse do Uno, sinto-me vivo. Costa Pereira é só um nome de praça, Jerônimo Monteiro um nome de avenida. Mesmo Carlos Gomes, com tudo o que fez, é só um nome de teatro. Já eu, sendo eu tão somente, estou vivo. Envio uma mensagem a Sílvia, que me responde prontamente. Estou vivo.


Fim das Tardes – Selva Morale (V)

outubro 18, 2016

 Agora, da janela de meu apartamento, dou de cara com a espessa névoa de fumaça que encobre a quase totalidade do Mestre Álvaro. Quem não o conhecesse não distinguiria sua silhueta em meio ao fumacê. A origem deste fenômeno está no que chamam de turfa, esse monte de planta em decomposição à espera de virar, daqui a milênios, carvão. Há, entre o conjunto habitacional em que habito e a enorme montanha, uma planície pantanosa e devoluta. Na época seca, os gases dali advindos criam ambiente propício para combustões espontâneas. Qualquer bituca de cigarro ou vela de despacho podem fazer estragos monumentais. Há dias vejo de minha janela os bombeiros se movimentando. O que podem fazer, os coitados? Meros esguichos de água nada podem contra essa imensidão em brasa, essa terra ardente que se comunica diretamente com os fogos subterrâneos dos infernos.

Quando o vento vem do mar, vai-se ao menos a fumaça, mas cria-se um impasse. Afinal, o que é melhor: respirar o refugo tóxico da queima da turfa ou o ar carregado de pó de hematita proveniente do Porto de Tubarão? Confesso que não sei a resposta. No entanto, inalo-a todos os dias. Tomo um café preto, um pedaço de pão seco e parto.

De posse do Uno branco, sigo em direção a Cariacica pela rodovia estadual. Abro a janela, pronto para fumar, mas inundo meu carro de compostos sulfídricos e desisto. No posto de gasolina lá está o SUV de Sr. Marchetti. Dou-lhe sinal de luz, ele passa a me seguir. Vamos juntos até o terreno de Sr. Sibert, que nos aguarda. A vicinal que nos leva até lá é longa e cheia de buracos. Há barracos, terrenos baldios, pequenos comércios, pontos de ônibus, algumas indústrias, uma capelinha da época colonial em ruínas. Chegamos.

A porteira está aberta, entramos e estacionamos ao lado do carro de Sr. Sibert. Comprimento Sr. Marchetti, que me orienta, a boca pequena:

– Não comente nada sobre o terreno de Conceição da Barra.

Sr. Sibert chega. Salamaleques curtos e usuais. Dispõe-se a nos mostrar a propriedade: quadradão de 5.000 m2 em aclive, alguns muros de arrimo nas encostas, caminhos parcialmente britados. Poucas árvores espalhadas pela propriedade. Mato alto. Abandono de pelo menos seis meses. E principalmente, no meio de tudo: o matadouro.

Eis imóvel com alto pé-direito, todo em alvenaria, cor branca. Precisa de muitos reparos, é verdade, mas parece operacional. Interior produtivo azulejado, nos pisos e nas paredes até 2,60m. Teto com isolamento térmico. Maquinários para abate, mesas de corte e esteiras de içamento bastante depreciados mas em condição de serviço. Ambientes frigorificados. Imensas câmeras de congelamento em chão de cimento queimado e paredes com isolamento. Mezzanino com escritório para 10 pessoas.

– Quantos porcos o Senhor costumava abater aqui, Sr. Sibert?

– Olha, dá pra abater uns 500 por dia. Se converter para abate bovino, aí vira fácil uns 200 animais por dia.

Enquanto conversam, analiso uma mancha no chão. Aproximo-me, cutuco. Está dura e me parece irremovível. É sangue encrostado. Percebo agora que há manchas parecidas com essa em vários locais. As paredes do abate, por exemplo, possuem dezenas delas. Creio tê-las visto pulsando, como se fossem lesmas vivas.

– Essa parede possui viga?

– Não, isso é só tijolo. As vigas estão bem espaçadas, eu mesmo verifiquei isso durante a construção. Dá pra abrir tudo. Se o Senhor quiser quebrar as paredes, só precisa verificar as fiações e o encanamento.

– Isso me anima. De repente isso aqui vira um Centro Logístico. Quantas docas?

– Quatro. Tem espaço pra mais. E o Senhor viu o tamanho do pátio…

As manchas, vejo-as amolecendo: tornam-se líquido viscoso e escorrem para o canal de esgoto central. O canal abarrota-se de vermelho; transborda a gosma para o piso. Olho para cima, para a esteira de içamento. Vejo ganchos, e nos ganchos porcos soltando guinchos horríveis, pavorosos. Não deve haver na Terra som tão dilacerante.

– O Senhor deve ter percebido o pé-direito. Dá para colocar estoque vertical em quase todo o piso. Eu já antevia a possibilidade de conversão deste prédio.

– No que fez muito bem. Nunca se sabe o dia de amanhã.

Vejo cenas de esquartejamento mecânico, porcos degolados com canivetes elétricos, carcaças penduradas pela perna esvaindo-se em cachoeira rubra. Quantos litros de sangue possui um porco? Vão passando dezenas deles sobre minha cabeça. Sangue respinga em minha camisa e em minha calça. O cheiro é potente, a náusea me engole, vejo de repente a boca que beijei ontem, a boca de carne de Sílvia, o corpo de carne de Sílvia, vejo o vácuo, sinto premente o vômito…

Saímos do prédio. Sr. Marchetti tapeia as costas de Sr. Sibert, camaradando:

– Pois é, Sr. Sibert. O Senhor tem um bom patrimônio nas mãos… É uma pena vê-lo assim, em abandono… Interessa-me, a princípio interessa-me, mas o Senhor há de convir que há muitas benfeitorias a fazer aqui para torná-lo atrativo… Meu terreno, o Senhor sabe, está prontinho para o que o Senhor quiser plantar. Não consigo fazer essa troca a limpo, como o Senhor sugeriu. Além disso, como pagaríamos a comissão do nosso amigo aqui? A menos que, sei lá…

– A menos que o quê?

E então Sr. Marchetti abraça o interessado Sr. Sibert e o leva para longe de meus ouvidos, enquanto cochicha no dele. Vejo-os conversando, vejo-os gesticulando e movendo as bocas, mas nada disso me interessa. Só consigo enxergar agora uma única boca, uma grande boca feita de carne moída. Ainda ouço os guinchos dos porcos, mas abafados pelo isolamento acústico do prédio, que julgo eficiente. Um pequeno córrego de sangue forma-se a partir do canto do prédio e segue o caminho de brita até a entrada do terreno. O córrego torna-se torrencial e encharca meus sapatos. Petrifico. Minhas meias estão secas. Penso novamente em Sílvia.

Voltam abraçados.

– G***, quando poderemos ver a papelada?

– A papelada? Como assim?

– Meu amigo José Sibert aqui e eu fechamos negócio! E aí, em quanto tempo teremos a papelada?

– Costuma levar de duas a três semanas para a liberação de documentação em todos os cartórios, Sr. Marchetti. É o procedimento padrão.

– Mas nós não somos clientes do tipo ‘padrão’, não é mesmo, G***?

Pisca-me discretamente com o olho que o nariz esconde de Sr. Sibert.

– Claro que no seu caso, eu conseguirei para o começo da semana que vem. Os do Sr. Sibert já tenho todos, faltam somente as certidões do cartório de Santa Teresa, que saem amanhã, não é isso, Sr. Sibert?

– É exato!

– Excelente! Até lá, creio que podemos assinar um pré-acordo de intenções. O que me diz, G***?

– Da nossa parte, não vejo problema algum. Posso providenciar isso para essa semana mesmo.

– Ótimo! Vamos comemorar! E aí, José, onde é que tem boteco nessa piromba?

Despedimo-nos. Antes de partir, Sr. Marchetti cochicha em meu ouvido:

– Você é demais, meu rapaz! Joguei um verde e nem precisei falar mais nada, ele mesmo ofereceu o terreno! Tá tudo correndo bem… Consiga aquelas documentações com seu amigo do cartório e o terreno será seu. Sobretudo, não envolva a imobiliária nesse negócio. E não comente nada ao Sibert, ouviu bem? Vai dar tudo certo!

Na volta para a Serra, a fumaça espessa-se; conduzo lentamente. No rádio comentam o pânico das comunidades vizinhas ao incêndio. Um brigadista sustenta a hipótese de ação criminosa com fins especulativos. Todo ano é assim, penso. Ao meu lado esquerdo o gigante maciço com nome de mestre paira sobre gases. Ao meu lado direito vai um ônibus carregando na rabeira quatro meninos de bicicleta. Um deles, de garupa, filma a algazarra. Todos parecem muito felizes.


Fim das Tardes – Selva Morale (IV)

agosto 10, 2016

Agora recebo no peito uma suave brisa atlântica. No cristalino, vindo das águas marinhas, um tratado completo sobre todos os possíveis tons de azul, muitos deles inimprimíveis em sistema CYMK. Nos tímpanos, o efeito Doppler das ondas batendo na areia da direita para a esquerda, misturado ao desvio para o grave do som das buzinas em direção oposta.

Vejo adiante, boiando sobre a linha do horizonte, um navio cargueiro chegando. Minto, não se parece em nada com um Panamax. Chega mais perto: não são pilhas de contêineres o que leva em seu convés. São velas, dezenas delas, grandes e pequenas. A embarcação aproxima-se. Há rubros emblemas inscritos nas velas. São Cruzes da Ordem de Cristo. Agora é perfeitamente visível: é uma caravela portuguesa. Descola-se da água. Sobrevoa as ondas que se chocam às pedras. Sobrevoa a praia e a procissão de índios que carregam o corpo de Anchieta, o rei Ubu. Lentamente flutua sobre a avenida Beira-Mar, sobre os vendedores de coco, de tapioca, sobre a meninada que brinca no parquinho. A caravela vem em minha direção e se chocará logo mais contra a varanda do prédio em que me encontro. Consigo distinguir, em meio a balbúrdia de barbados no convés, Vasco Fernandes Coutinho, o primeiro dono desta capitania. Ele acena e dá uma piscada. Chega tão perto que consigo ver seus lábios balbuciando: “É nóis!”…

Uma voz ansiosa interrompe a cena:

– E então? Quanto você acha que vale?

– Oi? Desculpe-me, me distraí. Essa vista é muito linda.

– É mesmo, não é? E tem essa brisa o dia inteiro. Tive que envidraçar a varanda.

– Essa vidraçaria eu conheço, é muito boa. Excelente acabamento.

– Fiz toda a reforma com um arquiteto muito bom.

– Você tem muito bom gosto. Isso valoriza bastante o apartamento.

– E então? Quanto você acha que vale?

A mesma pergunta em menos de um minuto! As pessoas em geral costumam ser mais discretas. Seu sotaque mineiro é bastante pronunciado. Zona da Mata? Juiz de Fora?

– Não sei, preciso avaliar todos os detalhes. Seu apartamento é muito bom, mas tenho que levar em conta a localização, o entorno, o prédio como um todo, entende?

É preciso que se diga: não sou corretor somente. Tenho carteira de avaliador de imóveis também, CRECI 0045869, e faço meus bicos por fora. Tem mês que chego a ganhar mais avaliando imóveis do que com a corretagem. Claro que sei quanto vale o apartamento, conheço o mercado. Mas também é claro que sei sobrevalorizar meus serviços.

– Olha, eu sei quanto vale, ok? Teve um corretor que disse que eu poderia pedir um milhão e meio nesse apartamento fácil, fácil.

– Ok, pode até ser, mas a senhora não precisa de um avaliador para dizer quanto o mercado paga, e sim quanto efetivamente vale, não é? Afinal, a senhora não quer vendê-lo, e sim colocá-lo no seu… processo, não é isso?

– Sim, é isso mesmo. Fuma?

– Aceito.

Ela, óculos escuros sobre o coque de cabelos enlourecidos, tira o maço de Marlboro vermelho da bolsa, saca um cigarro, oferece-me outro, acende ambos e se escora na sacada. Sigo-a, confuso. Por que aceitei esse cigarro tão naturalmente? Eu que conheço meu lugar; eu que faço do formalismo barreira e refúgio, cedo docilmente ao trato pessoal que ela impôs. Tratá-la por senhora não faz, de fato, o menor sentido: não deve ter mais do que trinta anos. Ela parece refletir e fala olhando para o mar:

– A gente tinha acabado de se casar quando meu marido comprou esse apartamento. Faz nove anos; a gente ainda se amava naquela época!

Para meus propósitos, a única informação útil em sua fala é o numeral nove. Retenho-o.

– Eu me lembro, na época, que ele pagou um milhão…

Obtenho então todas as informações necessárias para meu discreto cálculo. Todo o restante é procedimental. Considero juros de mercado. Anualizo. PV = 1.000.000, n = 9. i = 10% a.a. Ela quer dois milhões e trezentos; o mercado – ambos sabemos disso – não oferece mais do que um milhão e meio. A disparidade entre vontade e realidade é de oitocentos mil. Meu salário, evidentemente, não chega a um cêntimo disso – e ambos sabemos disso.

– Qual é seu nome mesmo? – ela pergunta.

Fizesse eu uso, por pudor literário ou anseio de anonimato, da tradição tipográfica novecentista, meu nome estaria resguardado sob os caracteres G***. Mas já estamos distantes quase duzentos anos de tais idiossincrasias e eu entendi perfeitamente o sentido de sua pergunta. Mostro-lhe displicentemente meu crachá exposto sobre o peito e respondo-lhe:

–   Você está sozinha aqui?

– Sim, meu marido está em C*********, não pôde vir. Você sabe, é ano eleitoral…

E então, à noite, tomo o banho mais demorado de minha vida, corto minhas unhas, ponho a jaca mais estilosa que possuo, dou um tapa num banza velho escondido na gaveta, encontro-a num barzinho qualquer da Rua da Lama, tomamos cinco garrafas de cerveja, vamos até o apartamento em litígio e trepamos até a exaustão.


Fim das Tardes – Selva Morale (III)

março 8, 2016

Agora estou sobre a terceira ponte, essa que, ao levantar-se com calma da Vila Velha, sobe uns 70 metros sobre o canal, curva-se e chega abrupta à capital. De posse do Uno, contemplo a paisagem, andando devagarinho pela pista rente à borda. Observo, da direita para a esquerda, o panorama inengolível de complexos objetos assim dispostos: a) Morro do Moreno; b) canal desembocando no vasto Oceano de Atlantis; c) alcateia de navios-sonda aguardando atracagem; d) ilhas do Boi e do Frade; e) Porto de Tubarão, a.k.a. Ucrânia; f) praia do Camburi; g) matilha de prédios das praias do Canto e Suá; h) caixote brutal e inacabado do Mendes da Rocha; i) tartarugas do projeto Tamar; j) canal de Santa Maria em direção ao centro e montante; k) cinco gigantes rochas graníticas que impedem o traçado retilíneo do canal; l) velho mosteiro colonial de inspiração cubista, evidência arquitetural contrária a cláusula cronológica. Não sem motivo, recebo no espelho luz alta do ônibus seletivo, acompanhada de perigosa aproximação à traseira.

Tenho compromisso em cinco minutos com Sr. Marchetti (pronuncia-se Marquéti). É ele quem detém a propriedade da fazenda em Aracruz. Nosso ponto de encontro é bastante insólito: curva da Iracema, quiosque número 2, mesa ao fundo. São onze da manhã, acabo de voltar de duas visitas frustadas enquanto esse homem tem a têmpera de convocar-me para reunião diante da praia, seguramente com copo de cerveja na mão.

Fato. Enquanto suo em bicas – debalde – dentro de um paletó preto de microfibra, Sr. Marchetti veste bermuda, mocassim e estranha camiseta polo com escritos indecifráveis. Completam o quadro os óculos escuros – decerto úteis diante da penumbra do salão – e o celular, inseparável de sua orelha mesmo ao cumprimentar-me; aliás, faz um salamaleque sem entusiasmo, com a mão esquerda desocupada dobrada ao meio, sem mover-se da mesa ou fazer menção de levantar-se. Eu, já acostumado a encontros descorteses, finjo ânimo e chacoalho sua mão à inglesa, talvez mais do que deveria. Seu olhar severo trai sabe-se lá que ojeriza, se a mim ou ao interlocutor do aparelho.

Não está só: há uma pessoa a sua frente, que me cumprimenta desinteressadamente. Há, no meio deles, um balde cheio de gelo e duas garrafas de cerveja. Sr. Marchetti finaliza a chamada, dirige-se a mim:

– Me deixa terminar essa conversa aqui com o Davi e eu já falo com você, pode ser? Vai conversando com o Alex ali, enquanto isso. Toma um gole?

Cedo. Não recuso um copo de cerveja com esse calor todo. Há atrás de mim um senhor, em pé, na mesa ao lado. Vestia uma camisa social verde água, sem gravata.

– O Marchetti ali me falou que você trabalha com imóveis…

– Pois é…

Então, para minha estupefação, Alex ri com todos os dentes, uma gargalhada de cachaça, com a língua frouxa e certo charme. É que o “Marchetti ali” acaba de fazer alguma piada interna, com voz propositalmente alta para chegar a seus ouvidos. Nesse momento percebo que a palavra escrita na sua camiseta polo não possuía nenhuma vogal. Seria alguma mensagem cifrada da Kabbala?

– Então, peço deculpas pelo camarada. Ele parece sério, mas você não o viu na lancha depois de 19 garrafas de cerveja no cocoruto. Alucina! Ele a-lu-ci-na!

Sr. Marchetti ri, como que esperada a resposta à blague. Eu, embora em chamas, permaneço em silêncio.

– Não sei se você está a par: a superintendência lançou uns lotes quase de graça na Serra; é barbada! Lembra da FUNAI durante Geisel? Pois é, mesmo naipe, mesmo presente!

Meu interesse pelo folder tendendo a zero – eu era só uma criança sob Geisel -, Alex passa a outro ataque:

– Você já deu uma olhada nesse projeto do porto em Presidente Kennedy? Nem Roterdã possui esse calado! Projetado pra escoamento via minerioduto e trem de carga. Multimodalidade assim, nem em Tubarão, meu filho!

– Interessante…

Passeio pelo folder com o mesma vontade de potência de um filósofo schopenhaueriano. Engulo o resto de meu chopp. Alex encachaça-se, não se dá por vencido e aborda-me sobre meus possíveis clientes que necesitem de revisão contábil e fiscal. Você sabe, não está fácil pra ninguém. O Sol, esse eterno, brilha nos copos e felizmente Sr. Marchetti me chama. Sento-me ao lado de Davi, que preenche meu copo com espuma.

– E então? Trouxe os papéis?

– Sim, consegui. Esse José me enrolou um pouco e me passou documentação incompleta. Mas acabei conseguindo a escritura do imóvel graças a um parceiro meu no cartório.

– Deixe-me ver.

José, um Sibert de Santa Maria de Jetibá, possui belo terreno urbano em Cariacica com um frigorífico desativado. Propõe troca a limpo – sem grana – pela fazenda em Aracruz. Dispõe-se a incluir todos os ativos de seu terreno na troca.

– A princípio, não me interessa. Que é que eu vou fazer com uma fábrica parada? Além disso, tenho que pagar sua comissão. Pago o quê, se não há dinheiro, só escambo?

– Sr. Marchetti, se me permite dizer, refleti sobre isso. Meu parceiro também descobriu que esse José Sibert possui um pequeno lote urbano em Conceição da Barra, dez de frente, dez de fundo. Talvez seja interessante pedi-lo em contra-proposta…

– Rapaz, você não dá ponto sem nó, hein? E o que faz você pensar que ele aceitará a proposta?

– Sei lá, um sentimento… Imagino que ele já deve ter contrato com a papeleira, só lhe falta onde produzir o pinheiro. Produzir em Cariacica ele não consegue, o terreno é pequeno. Além disso, ele adorou sua propriedade, Sr. Marchetti! Está aberto a negociação.

Sr. Marchetti pensa; faz gesto de pensar ao menos. Olha para a papelada e encara Davi, demandando-lhe tácita opinião. Este, em silêncio, gesticula favoravelmente, torcendo a boca e o queixo para frente como um Marlon Brando.

– Lote em Conceição da Barra, hein? Bom, vamos ver esse terreno dele então. Mas vou te pedir um enorme favor – para nós dois!

Acende um cigarro, aproxima o corpo em minha direção como um gesto de boa vontade – quiçá o primeiro! e dispara:

– Talvez, para um melhor relacionamento, seja melhor deixarmos a imobiliária fora desse negócio, o que lhe parece? Eu serei grato, José – tenho certeza – também, e você ganhará um quinhão que jamais levaria por vias normais. Justo, não lhe parece, Davi?

Davi aquiesce, fazendo uso da segunda vértebra. Alex, lá detrás, acompanha o voto. Eu, como Champollion, até então entregue à decifração dos quatro caracteres impressos em alto relevo sobre a camiseta de Sr. Marchetti, sinto-me obrigado à reação:

– Beleza.

– Ótimo! E quando poderemos ver o terreno?

– Quando o senhor estiver disponível.

– Pode ser amanhã?

– Verificarei com o proprietário e retorno ainda hoje, Sr. Marchetti.

Saio pensativo e estranhamente leve. YHVH. Ípsilon, agá, vê, agá. Já vi isso em algum lugar. Mas onde? Dentro do Uno branco, ligo o ventilador no máximo na tentativa de expulsar o mormaço acumulado. No semáforo, assisto passivamente a um menino negro fazendo acrobacias com bolas de tênis.


Fim das Tardes – Selva Morale (II)

março 2, 2016

Agora estou sentado diante de minha escrivaninha, no escritório. Diante de mim há uma tela plana de computador; o sistema está aberto e vejo minha agenda para hoje: Davi em Laranjeiras às 09:30, sala comercial para aluguel. César em Carapina às 10:30, sala comercial para compra. Maria de Lourdes em Barcelona às 12:30, casa em condomínio fechado para compra. José em Aracruz às 14:30, terreno para compra. Pedro em Carapina às 17:30, casa para aluguel (a confirmar).

Tento rememorar o sonho que tive à noite. Eu era um Deus e reescrevia o Gênesis. Mantive-me fiel à proposta hebdomadária da criação; ao contrário do hebreu, eu era um Deus atento às minúcias da física quântica e da astrofísica e menos afeito a alegorias. No primeiro dia não havia nada, todas as coisas do Universo cabiam no espaço de um átomo; explodi-as. No segundo dia tudo era uma imensa sopa de partículas sub-atômicas; deixei-as fervilhar. No terceiro dia criei os átomos simples, fiz surgirem os primeiros aglomerados de matéria. No quarto dia criei as estrelas, as primeiras constelações, as galáxias, e Eu vi que não era nem bom nem mau. No quinto dia fiz nascerem os sistemas planetários, e mais especificamente esse do qual me ocupo. A Terra – bem como todos os outros planetas – nasceu nesse dia, e era uma bola amorfa de fogo. No sexto dia expulsei da Terra suficiente matéria para compor a Lua, endureci a crosta da Terra e sobre essa crosta fiz nascer grossa camada de água e, mais acima, de ar. E somente no sétimo dia fiz da crosta terrestre palco da vida, palco das inúmeras evoluções e mutações das espécies, de extinções e involuções. Finalmente, quase no fim desse dia, criei o homem em tudo a mim dessemelhante e lhe disse: “És livre. Vai e anda por toda essa terra que te pertence.” Não me lembro se realmente falei isso em meu sonho.

Mas lembro-me de ter deixado claro – eu enquanto Deus –  que a terra pertencia aos homens. Nesse ponto eu acordei, não sem o amargo sentimento de ter compactuado no último segundo com o Deus  bíblico, o da imagem e semelhança, o do “crescei e multiplicai-vos”, o do “espalhai-vos sobre a terra abundantemente”. Com o uti possidetis assim entranhado no pensar, como pode o homem achar que não é dono de tudo o que há para pisar?

Tomo o Uno para chegar aos meus compromissos. Sobre estes, uma estatística pessoal: menos de 5% de minhas visitas transformam-se em contratos assinados. Está um pouco abaixo da média, mas não chega a ser escandaloso; há corretores em pior situação que a minha: Abigail, Abraão e Albuquerque não atingiram nem 3%. Esses não sobrevivem muito tempo. Mas que fazer? É sempre possível responsabilizar a crise, essa dúbia e cruel devastadora de lares e sonhos.

Meus três primeiros encontros foram infrutíferos. O último do dia havia sido cancelado. Dirijo-me a Aracruz pela BR-101. Almoço rapidamente num posto à beira da estrada. Rebato o buffet com leite queimado. José – possível cliente – deseja conhecer um terreno que está em nosso portifólio há mais de dois anos. O terreno tem 20 hectares, margeia a estrada secundária que dá acesso à BR e à cidade, é metade plano e metade acidentado. Tem um riachinho que beira o outro lado. Toda a mata legal, no entanto, se encontra na área mais íngreme do terreno, o que te deixa a melhor parte para cultivo ou criação.

– Tem mina d’água?

– Ô! E abundante! No meio da mata.

– E a mata legal? Chega aos 10%?

– Não vou mentir pro senhor: 6%. Mas o senhor conhece a cidade… Aqui a fiscalização é mais tranquila…

Todo corretor depara-se, cedo ou tarde, com algum dilema moral advindo de assimetria de informações. Vai de seu escrúpulo (ou necessidade) revelar ao cliente o que não lhe interessa. Esse lindo lote, aparentemente fértil, é estéril. Nem café, nem mamão, nem pimenta, nem mesmo braquiária, nada que se plante ali cresce e floresce, nada vinga, apesar da vizinhança reconhecidamente produtiva. Tenho por mim que ali viviam aimorés; foram dizimados; seus corpos foram deixados no chão, sem cova cristã. Aquele pedaço de mundo é amaldiçoado.

– Tá ótimo, tá bom até demais. Vou plantar eucalipto mesmo… Se essa nova lei sair e floresta plantada passar a computar como reserva legal, eu tô é feito!

Sem dúvida, é uma boa ideia plantar eucalipto nesse terreno: não há cultura que exaura mais o solo. Aqueles paus nus e tesos esgotarão da terra seus últimos recursos, e junto deles sua história ignóbil. Não se dizia que depois da guerra o pão sempre vem com gosto de sangue? E o trigo parece brotar com mais vigor? Da mesma forma, um armário feito de MDF vendido nas casas Dadaulto conterá a alma de algum aimoré morto enquanto dormia.

– Aceita permuta? Tenho um terreno em Cariacica com um frigorífico desativado…

– Posso propor ao proprietário sua oferta. Se o senhor puder me enviar a escritura desse terreno para que eu dê uma olhada…

Despedimo-nos. Volto pela estrada secundária. Quinhentos metros antes de entrar na BR, entrevejo o belo mosteiro budista. Por um momento penso em entrar; sempre quis conhecer. Parece bem guardado. Penso melhor: está tarde, talvez outro dia.


Fim das Tardes – Selva Morale (I)

março 2, 2016

Estou comprimido entre o mar ressacado e o que sobrou da restinga. Estou em pé fumando e observando as ondas furiosas, cuidando para que a areia molhada não suje meus sapatos pretos. Há barcos de pesca estacionados na boca da praia: quem é louco de ir pescar com o mar nesse estado?

Estou na praia de Manguinhos e é fim de tarde. Esse é meu refúgio há muito tempo; ninguém sabe disso. A praia está sempre deserta, nunca trouxe comigo pessoa alguma. Gosto daqui. É o único lugar na Terra em que consigo me sentir em paz. Minto: também gosto de observar o mar do alto das dunas de Guriri. A retidão daquela praia, que admiro da direita para a esquerda, me faz pensar nesse imenso infinito que é o Universo.

Sou corretor de imóveis. Vendo e alugo terrenos, casas, apartamentos. Ultimamente tenho pensado sobre a natureza dos produtos que negocio. Na verdade, tenho pensado sobre a natureza de todas as coisas. Os nomes, por exemplo. A toponímia. Gosto de analisar os nomes dos lugares, dos bairros, das ruas, dos edíficios. Gosto também das tardes caindo devagarinho, sem pressa, pra detrás do mar. Minha mente é um lugar selvagem.

Apago geralmente o cigarro na sola úmida de meu sapato. Equilibro-me na areia tombante da praia, busco a saída, aprecio novamente o mar. Às vezes acendo um novo cigarro e me apóio numa das canoas. Todos sabem que a cor desse mar é meio marrom, meio bege, mas ele é bem limpo. Lá atrás dele, quase perto da linha do horizonte, há uma faixa de água mais verdinha, quase azul. Talvez seja o reflexo do céu. Se o céu não fosse azul, talvez o mar fosse totalmente escuro.

Voltadas as costas para o mar, os olhos se enchem de terra. A terra onde o homem pisa é terra dividida. Acho que nunca pisei em chão que já não tivesse sido demarcado, loteado, topografado. Toda terra que eu conheço pertence a alguém, a algum ente físico, jurídico ou estatal. Mesmo o Mestre Álvaro, imponente maciço que vigia esta enorme planície, tem seus donos. Como é possuir uma montanha? Como sente-se a montanha ao ser pertencida?

Estou diante de casas bastante atraentes. Manguinhos é um bairro pacato, a violência é esparsa, as ruas são de areia e mantidas assim pela associação – que tem seus parceiros na prefeitura – para evitar especulação. Você tem aqui um espaço privilegiado a cinco minutos do centro da Serra. Posso lhe contar meu sonho? Pretendo um dia juntar grana suficiente para comprar uma casa dessas, a beira-mar, numa praia assim, semi-deserta. À noite contemplarei a praia escura, o mar sem luz, e minha visão fará a curva da Terra e chegará ao Continente do qual foram arrancados meus bisavós.

Meu carro é um Uno branco. Na verdade não é meu, uso-o, pertence a empresa. Saio pelas ruas de areia em busca da rodovia. Passo pelo grande empreendimento de lotes residenciais que comercializo, o Key Biscayne. Na verdade é uma extensa várzea terraplanada com um pequeno manguezal no meio, desses que dão nome ao bairro e que outrora populavam a região.

Estou em casa e é fim da tarde. A noite inunda de breu os cômodos. Estou sentado no sofá da sala, em silêncio, postergando a incandescência até o limite do incômodo. Adiarei meu jantar – frugal – até o limite da fome, bem como minha ida à cama – solteira – até o limite da estafa.


5040 (V)

dezembro 2, 2015

Diante do imenso painel de horários da estação central de Munique, decidi-me pelo próximo trem para Viena, que só partiria às sete horas da manhã. Tinha a noite inteira pela frente; a fome me corroía por dentro. Troquei alguns francos por marcos, comprei dois sanduíches e dois cafés. Sentei-me ao lado de Ludwig, que me aguardava numa fileira de bancos vazia, num dos cantos da estação.

– Já que fui convidado para sua casa, nada mais justo que oferecer-lhe este fausto banquete.

– Obrigado. Não vou recusar, mas vou comer mais tarde. Você tem seis horas até seu trem, não vai descansar um pouco?

– Não tenho sono, e mesmo que tivesse não iria conseguir dormir. Faz muito frio… Você costuma passar suas noites aqui?

– Não, eu geralmente durmo numa pensão do serviço social, que não fica muito longe. Mas hoje pretendo passar a noite ao seu lado, se não se importa. Não é sempre que tenho boa companhia.

– Oh não, não me importo. Será um prazer.

A estação ainda não estava vazia: um trem acabara de chegar, trazendo consigo dezenas de homens muito bem agasalhados que caminhavam a passos rápidos para a saída.

– Tenho muito tempo livre, sabe como é. Esses senhores apressados aí, vejo-os todos os dias. É interessante ver como vão todos num mesmo passo marcial, indo para suas casas ou para seus trabalhos, fazendo provavelmente o que se espera deles, sem nenhuma indagação estampada em seus rostos. Eu já pertenci a essa tropa, entendo-os perfeitamente. Mas hoje somos imiscíveis, como óleo e água. Não existimos mutuamente; não nos tocamos. Nossos olhares, quando se cruzam, carregam consigo um desconforto infinitesimal; tão logo se viram, o constrangimento se dissipa. Uma existência como a minha lhes incomoda, isso é claro, mas não a ponto de causar-lhes preocupação.

– Não deve ser fácil ser confrontado a essa realidade todos os dias…

– Sabe, já passei da fase de odiar o mundo e as pessoas. Não creia que lhe falo em tom amargurado; apenas constato como as coisas são. Meu orgulho ferido ficou lá atrás. Minha dor pela perda, também. Hoje tento apenas sobreviver e extrair da vida tudo o que eu conseguir. Mas se você quiser conhecer melhor os homens, ponha seu chapéu no chão e sente-se ao lado dele. O que você obtiver depois de um dia, eis quanto vale a Humanidade.

Fiquei imaginando Ludwig com um chapéu de pequenas abas: ele realmente se parecia com Umberto D., só lhe faltava o cachorro. Veio-me à mente a penível cena em que Umberto tenta pedir esmola em frente ao Pantheon, mas é impedido pela vergonha ao ver um conhecido.

– E como é que você arruma dinheiro?

– Meus filhos me enviam. Todo mês, sem falta, eu vou aos correios, falo meu nome e recebo 300 marcos. Não é muito, mas o suficiente para não precisar mendigar.

– Você fala com eles?

– Não. Eles pagam para não precisarem me ver ou falar comigo. Eles estão bem de vida, um trabalha num banco em Frankfurt, outro é dentista aqui mesmo. Não cai muito bem dizer a todos que seu pai é um andarilho, então eles dizem que eu morri. De certa forma, não deixa de ser verdade.

– Isso é muito cruel!

– Não os recrimino. Em certo sentido, quando escolhemos esta vida, renunciamos à outra. Morremos para aquele mundo. Somos espíritos vagando pelas estações, pelas ruas, tentando não incomodar muito os vivos. Somos uma raça de mansos diabinhos aos quais os anjos se privam de dedicar atenção, sem que isso lhes traga qualquer remorso à consciência. Sim, porque eles são anjos, não está vendo? Nossos mundos são tão distintos que não podem pertencer à mesma existência. Um deles é real; o outro é divino.

Encarei Ludwig. Fazia sentido. Não era somente metáfora: era realmente isso. A indiferença daquele mundo à miséria deste só pode ter essa explicação.

– E é por isso que quando vejo qualquer ato de caridade espontânea, é como se testemunhasse um pequeno milagre, um presente dos céus, uma intervenção divina. Não estou falando sobre as moedas que as pessoas nos jogam automaticamente como se estivessem comprando o direito ao esquecimento, mas sobre atitudes como a sua, ao oferecer-me o maço de cigarros sem saber se eu iria devolvê-lo.

Entendi o recado e ofereci-lhe os penúltimos cigarros que eu possuía. Ele retirou um do maço, sorriu, eu peguei o último. Amassei o maço, acendi ambos e fumamos em silêncio, até Ludwig decidir rompê-lo:

– Gostaria de retribuir sua gentileza. Você parece ser um bom ouvinte. Se você me permitir, vou contar-lhe uma história que aconteceu comigo há muito tempo e que resume bem o que eu penso sobre a natureza humana. Essa história lhe pertencerá, e você julgará se ela merece ou não ter seu lugar em papel.


5040 (IV)

dezembro 2, 2015

– Você parece preocupado.

Tirei os fones. Encarei finalmente o homem.

– Mas pode ficar tranquilo. Não há muito fiscais dispostos a controlar um trem vazio como esse no meio da noite de sábado, a três dias do Natal, com o frio que faz lá fora.

Seu inglês era excelente, embora dominado por forte sotaque alemão. Decerto ele não havia deixado de observar-me, mesmo durante o longo momento em que meus olhos tentavam escapar-lhe.

– Pode ficar descansado com relação à fronteira também. A polícia não tem muito interesse em nós.

Nós? Quem éramos, segundo ele, nós? Sorri levemente, demonstrando alívio e cortesia. O homem começou a remexer o interior da sacola plástica, retirando uma faca e uma cebola.

– Quer?

Ele cortou a cebola em fatias e as comia como se fosse uma maçã. Segurando uma delas com o dedão e a ponta da faca, ofereceu-me, apontando em minha direção.

– Não, obrigado.

– Tem certeza? Nada é melhor contra gripe do que um bom pedaço de cebola crua.

– Não estou com gripe.

– Mas pode pegar. E você sabe como é, pegar uma doença vivendo nas ruas, com o frio que faz, pode ser fatal.

– Não vivo nas ruas. Estou indo para a casa de minha namorada.

– Ah! Que beleza! E onde vive sua namorada?

– Ela vive na Hungria.

– E de onde você vem?

– De Paris.

– Então já está na metade do caminho. Bom! Permita-me perguntar: por que não tomou o trem direto para Budapeste na gare de l’Est?

– É que eu vim de carona até Basileia. Depois tomei uns trens e cá estou.

– Entendi. Retenção de custo, não é?

– Pode-se dizer que sim…

– Vou lhe dizer: não há humilhação nenhuma em fazer parte do que os alemães chamam de intranquilidade social. Estou nessa vida de andarilho há vinte anos. Posso dizer que não conseguiria mais voltar àquela minha velha vida nem que me lhe devolvessem de bandeja.

Abriu sua bolsa de couro e retirou duas grandes apostilas.

– Essa minha nova vida me permitiu alargar meus horizontes. Está vendo essas anotações? Estava hoje em Zurique num curso sobre Dr. Jung. Vou às aulas como ouvinte há mais de um ano. Em Viena, a cada quinze dias, assisto a palestras muito interessantes sobre Dr. Freud. Gosta de música clássica?

Com avidez, retirou da bolsa várias partituras e um pedaço de papelão com o desenho de teclas de piano.

– Em Munique, sou ouvinte de um curso de música clássica com um professor excelente. Veja, é assim que treino meu dedilhado. Entende? Faço o que gosto e não gasto um tostão. Tudo de que preciso consigo nas ruas, nos serviços sociais, nas igrejas. Não passo fome nem frio. Tenho amigos. Além disso, não se deve subestimar a compaixão humana: ela não conhece limites e aparece nas situações mais inesperadas. Mas permita-me que eu me apresente: chamo-me Ludwig Buckmoser.

– Prazer, sou Teodoro.

– Prazer, Teodoro. Mas não vá crendo que esta é uma vida fácil, pelo contrário. Sofri muito, especialmente no começo. Eu tinha uma vida bastante confortável antes de me tornar habitante da rua. Eu tinha um bom trabalho, uma casa, um carro, uma família.

– E o que aconteceu?

– Eu trabalhava em uma empresa de eletrônica em Essen, era responsável pela arquitetura de placas industriais. Desenvolvia componentes com precisão de alguns micrômetros. Eu era muito bom nisso, parecia um relojoeiro suíço, um ourives de Antuérpia, só vendo. Mas, de uma hora para outra, perdi o controle do movimento das mãos. Elas começaram a tremer. Veja:

Esticou as mãos em minha direção. Havia de fato um tremor perceptível, mas não era maior que os habituais em mãos sadias.

– Não parece muito, mas é o suficiente para impossibilitar qualquer trabalho mais rigoroso na área. Em menos de uma semana, perdi meu emprego. No começo, tive o apoio de minha família, mas à medida que o tempo passava e que não encontrava recolocação (deve haver uma dezena de postos iguais ao meu em toda a Alemanha), minha mulher foi se tornando arisca. Certo dia, comunicou-me o desejo de divorciar-se. Posso dizer que não reprovei sua atitude: eu não era uma pessoa fácil. Assim, menos de três meses depois, já não tinha mais casa nem carro, e só podia ver meus filhos uma vez por semana. Eu era um homem acabado, destituído, com a moral destruída. Fui dormir em uma pensão. Lá, arquitetei meu suicídio, básico, envolvendo cadeira, lustre e corda. Felizmente, estava tão deprimido que não encontrei forças para pô-lo em prática. Mas tive-as suficiente para conseguir abandonar o quarto e todas as coisas que havia conseguido trazer de casa. Naquela noite dormi na rua, e nela durmo desde então. Mas olhe lá: eis que já estamos chegando a Munique! Bem-vindo, Teodoro! Acredito que, a menos que tenha feito uma reserva em um hotel, não se oporá ao meu convite para dormir em minha espaçosa e arejada casa, em pleno Hauptbahnhof!


5040 (III)

dezembro 2, 2015

Em Ivry-sur-Seine, subúrbio ao sul de Paris, há um grande posto de gasolina onde centenas de caminhões abastecem antes de seguir viagem. Plantei-me logo depois de sua saída, segurando um papelão com os dizeres em letras máximas: EST.

Inúmeros os veículos que passaram e ignoraram minha vaga súplica. Cheguei a pensar se ao invés de “leste”, que era o que estava escrito na placa, os motoristas não estariam lendo a abreviatura de Estônia. Ao longo de duas horas infrutíferas, confrontado à recusa e ao desdém, resolvi ser mais objetivo e especifiquei minha direção; escrevi Hungrie do outro lado do papelão. Sem resultado. Tentei aproximar o destino e rabisquei Allemagne. Nada.

Decidi interpelar os motoristas que abasteciam, mesmo sob o risco de ser posto fora à força. Abordei um motorista que abastecia um caminhão com placa da Romênia. “Bom dia! Hungria?” “Não, Romênia”. Fiquei imaginando que outro caminho ele iria tomar. “Iugoslávia?” “Não, Romênia”. Fiquei confuso. No entanto, para minha surpresa, ele me disse: “Mas posso deixá-lo no próximo posto”. Subi.

Contei-lhe meu objetivo, e ele me segredou em francês bastante compreensível: “Para pegar carona, você tem que demandar por destinações próximas. Não seja ambicioso demais se você espera pela compaixão humana. Alguns não podem dar carona, outros podem e não querem, uns têm medo, outros têm preguiça. Seja compreensivo e paciente ou você se mortificará”.

Passamos por um posto, e mais outro. Olhei para ele, sem compreender. “Posso deixá-lo em Saint Louis, na tríplice fronteira”. Agradeci-o profundamente, mesmo sem saber exatamente onde ficava a cidade.

Era final da tarde quando chegamos; já havia escurecido. O romeno me deixou numa avenida à borda de um rio que mais tarde descobri ser o Reno. “Não posso ir adiante. Você está vendo aquela passarela? Atravesse-a, e você estará na Suiça”.

Entendi ali que ele não queria arriscar a ter problemas com a imigração. Agradeci-o e segui andando, o frio na espinha. Atravessei a passarela e estava em Basileia. Não havia controle algum. Caminhei alguns quilômetros em busca da auto-estrada indicada nos paineis. Ao chegar, perdi qualquer ilusão: não teria a menor chance de conseguir carona àquela hora; as margens da estrada eram um extenso deserto sem vida humana, os carros passavam muito velozes e sequer me notariam. E ademais havia o frio, insuportável.

A estação de trem não era muito longe; caminhei mais alguns quilômetros e me refugiei. Havia um trem que sairia para Zurique em alguns minutos. Não titubeei, entrei no último dos vagões. Fiquei no hall entre as cabines, à espreita do controlador. Durante toda a viagem, ele não apareceu.

Eram dez horas da noite quando cheguei a Zurique Hauptbahnhof, a estação central. Tão logo cheguei, pulei em outro trem quase vazio, dessa vez para Constança. Dali tomaria a conexão até Munique. Na Alemanha, imaginava eu, talvez tivesse mais sorte como caronista. Na Suíça, em todo caso, era inimaginável.

A estação em Constança, a céu aberto, estava completamente vazia. Havia neve nos trilhos. Esperei mais de meia hora pelo trem de Munique. Perto da hora estimada de sua chegada, algumas almas apareceram e instalaram-se diante da linha amarela. Eu, em parte por frio e em parte por receio de encontrar algum fiscal, retive-me com discrição embaixo da marquise, fumando um de meus últimos cigarros.

Um senhor de idade aproximou-se e fez o gesto universal: dois dedos ao ar, o indicador e o médio, na horizontal, próximos à boca. Peguei meu maço de Lucky Strike e entreguei a ele. O homem, decerto surpreso com meu desprendimento, encarou-me, retirou um cigarro dos quatro que ainda restavam, entregou-me o maço e fez o outro gesto universal: a mão fechada com o polegar ao alto, movendo discretamente a falange. Entreguei-lhe meu próprio cigarro aceso ao invés do isqueiro, pois ventava. Ele aquiesceu balançando a cabeça, acendeu o seu com o meu e devolveu-me-lo, acenando com a cabeça. Afastou-se vagarosamente, deixando uma viva neblina de fumaça atrás de si. Pude contemplá-lo à vontade: tinha o cabelo e o bigode completamente brancos. Cobria a cabeça com uma touca preta, vestia um grande casaco forrado com algumas blusas embaixo e portava luvas de lã com os dedos abertos. Carregava uma sacola plástica de mão e uma bolsa de couro com a alça atravessando-lhe o peito. Era um andarilho, um errante ou, segundo o gosto burocrático dos franceses por acrônimos, um SDF, um sans domicile fixe.

O trem se aproximava, finalmente. Dirigi-me ao último vagão, e instalei-me perto da porta. Estava vazio. Olhava pela janela a cada instante, aterrorizado pela possibilidade de surgir um controlador e me expulsar do trem; seguramente morreria de frio naquela estação deserta.

Pouco antes do fechamento das portas, o homem do cigarro entrou no vagão e sentou a duas fileiras da minha, do outro lado do corredor, de frente para mim. Ele me encarava inquisitivo; eu tentei desviar-me de seu olhar procurando meu walkman na mochila. Apertei os fones em meus ouvidos e pus-me a escutar Crystal Silence em loop. Geralmente essa música me bastava para entrar em estado melancólico induzido. Mas ali, diante do olhar daquele senhor e da fragilidade de minha situação, não conseguia encontrar minha calma, nem tampouco pensar em Ulrika, meu amor, meu destino, meu terminus.


5040 (II)

dezembro 2, 2015

Em meus anos de Paris, troquei mais de endereço do que em todo o restante da minha vida: Gobelins, Alésia, République, Mouffetard.  A sublocação, sempre rateada, era a única maneira viável de manter-me na cidade, já que minha situação, irregular desde a chegada, não me permitia possuir um desses dossiers com os quais os franceses costumam mesurar um indivíduo.

Trabalhava ocasionalmente, o suficiente para conseguir me manter; a esse princípio me ative. Muitas vezes, o que ganhava servindo em um restaurante pela manhã, gastava à noite num bar vizinho. Nas minhas folgas ia à biblioteca, lia nas praças, comprava livros de bolsos de segunda mão, ia ao cinema no Odéon. Escrevia calhamaços colossais a Martina, que você conheceu quando foi me visitar em B.B.A.A. Mas o que eu gostava mesmo era andar a esmo pela cidade, adorava me perder pelas ruas, tomar ônibus até o terminus, vagar horas pelas periferias, parar em um café e tomar uma aguardente.

Fiz amigos. Tive-os às pampas, e me cercava deles. Se minha Paris não era uma festa, como a de Hemingway no entre-guerras, era sem dúvida uma boa noitada de bar. Nos bares conheci conterrâneos, futuros colocatários, pretensos artistas, estudantes, estrangeiros. Pau, catalão, era meu parceiro de xadrez e Stouts. Havia Guillaume, de Rouen, que muita vez me abrigou em seu sofá na Madeleine, depois de noites em claro. Havia Amir Pachá, iraniano amante de literatura, que bebia vinho até cair e sempre brindava à Omar Khayyam. E havia também Ulrika.

Apesar do nome de procedência germânica, Ulrika era húngara. Conheci-a num bar na Butte-aux-Cailles onde costumava jogar xadrez com Pau. Conversamos trivialidades, mas não me lembro do quê. Mas me lembro exatamente do que pensei quando ela riu de alguma coisa que eu falei: Martina não receberia mais minhas cartas.

Começamos a namorar. Ela estudava psicologia na Denis Diderot e morava longe, em Villejuif, em uma casa de família. Víamos-nos quase todos os dias depois de seu curso. Frequentávamos o Jardin des Plantes, o Montsouris, fazíamos longas caminhadas ao longo do Sena, de Bercy até a Ilha Saint Louis. Às vezes, para desarranjo de meu colocatário, ela vinha dormir em casa… Estávamos apaixonados, éramos felizes juntos.

Um dia, já era final de novembro, ela me disse que iria voltar à Hungria, mas que estaria de volta em dois meses.

Ouvi-a em silêncio; a notícia, entretanto, feriu-me como uma navalhada em minha carne. Era-me inaceitável passar tanto tempo sem ela. Decidi – mas não a informei – que iria vê-la no Natal. Nossa despedida na Gare de l’Est foi dilacerante. Eu sei, dois meses não pareciam muito, mas tente imaginar minha angústia diária em sua ausência! Amir Pachá dizia, ao entornar um Beaujolais de 5 francos, que eu parecia o Karamanlis de Perec, aquele que preferia desertar a guerra de Argélia a deixar os braços daquela pour qui son coeur bat.

Naquele mês de dezembro, passei a trabalhar dois turnos para juntar uma grana, mas as passagens de trem de fim de ano eram apavorantemente caras. Meu dinheiro não era suficiente para viajar, ficar uns dias em Gyor e retornar. Meus amigos, igualmente duros, apoiaram com reservas minha ideia: viajaria de carona até onde conseguisse, e tomaria trens onde o controle fosse menos rigoroso. Assim decidido, empacotei umas roupas, desejei boas festas a meu colocatário e me atirei na estrada em direção do Sol que mal havia despertado.