5040 (III)

Em Ivry-sur-Seine, subúrbio ao sul de Paris, há um grande posto de gasolina onde centenas de caminhões abastecem antes de seguir viagem. Plantei-me logo depois de sua saída, segurando um papelão com os dizeres em letras máximas: EST.

Inúmeros os veículos que passaram e ignoraram minha vaga súplica. Cheguei a pensar se ao invés de “leste”, que era o que estava escrito na placa, os motoristas não estariam lendo a abreviatura de Estônia. Ao longo de duas horas infrutíferas, confrontado à recusa e ao desdém, resolvi ser mais objetivo e especifiquei minha direção; escrevi Hungrie do outro lado do papelão. Sem resultado. Tentei aproximar o destino e rabisquei Allemagne. Nada.

Decidi interpelar os motoristas que abasteciam, mesmo sob o risco de ser posto fora à força. Abordei um motorista que abastecia um caminhão com placa da Romênia. “Bom dia! Hungria?” “Não, Romênia”. Fiquei imaginando que outro caminho ele iria tomar. “Iugoslávia?” “Não, Romênia”. Fiquei confuso. No entanto, para minha surpresa, ele me disse: “Mas posso deixá-lo no próximo posto”. Subi.

Contei-lhe meu objetivo, e ele me segredou em francês bastante compreensível: “Para pegar carona, você tem que demandar por destinações próximas. Não seja ambicioso demais se você espera pela compaixão humana. Alguns não podem dar carona, outros podem e não querem, uns têm medo, outros têm preguiça. Seja compreensivo e paciente ou você se mortificará”.

Passamos por um posto, e mais outro. Olhei para ele, sem compreender. “Posso deixá-lo em Saint Louis, na tríplice fronteira”. Agradeci-o profundamente, mesmo sem saber exatamente onde ficava a cidade.

Era final da tarde quando chegamos; já havia escurecido. O romeno me deixou numa avenida à borda de um rio que mais tarde descobri ser o Reno. “Não posso ir adiante. Você está vendo aquela passarela? Atravesse-a, e você estará na Suiça”.

Entendi ali que ele não queria arriscar a ter problemas com a imigração. Agradeci-o e segui andando, o frio na espinha. Atravessei a passarela e estava em Basileia. Não havia controle algum. Caminhei alguns quilômetros em busca da auto-estrada indicada nos paineis. Ao chegar, perdi qualquer ilusão: não teria a menor chance de conseguir carona àquela hora; as margens da estrada eram um extenso deserto sem vida humana, os carros passavam muito velozes e sequer me notariam. E ademais havia o frio, insuportável.

A estação de trem não era muito longe; caminhei mais alguns quilômetros e me refugiei. Havia um trem que sairia para Zurique em alguns minutos. Não titubeei, entrei no último dos vagões. Fiquei no hall entre as cabines, à espreita do controlador. Durante toda a viagem, ele não apareceu.

Eram dez horas da noite quando cheguei a Zurique Hauptbahnhof, a estação central. Tão logo cheguei, pulei em outro trem quase vazio, dessa vez para Constança. Dali tomaria a conexão até Munique. Na Alemanha, imaginava eu, talvez tivesse mais sorte como caronista. Na Suíça, em todo caso, era inimaginável.

A estação em Constança, a céu aberto, estava completamente vazia. Havia neve nos trilhos. Esperei mais de meia hora pelo trem de Munique. Perto da hora estimada de sua chegada, algumas almas apareceram e instalaram-se diante da linha amarela. Eu, em parte por frio e em parte por receio de encontrar algum fiscal, retive-me com discrição embaixo da marquise, fumando um de meus últimos cigarros.

Um senhor de idade aproximou-se e fez o gesto universal: dois dedos ao ar, o indicador e o médio, na horizontal, próximos à boca. Peguei meu maço de Lucky Strike e entreguei a ele. O homem, decerto surpreso com meu desprendimento, encarou-me, retirou um cigarro dos quatro que ainda restavam, entregou-me o maço e fez o outro gesto universal: a mão fechada com o polegar ao alto, movendo discretamente a falange. Entreguei-lhe meu próprio cigarro aceso ao invés do isqueiro, pois ventava. Ele aquiesceu balançando a cabeça, acendeu o seu com o meu e devolveu-me-lo, acenando com a cabeça. Afastou-se vagarosamente, deixando uma viva neblina de fumaça atrás de si. Pude contemplá-lo à vontade: tinha o cabelo e o bigode completamente brancos. Cobria a cabeça com uma touca preta, vestia um grande casaco forrado com algumas blusas embaixo e portava luvas de lã com os dedos abertos. Carregava uma sacola plástica de mão e uma bolsa de couro com a alça atravessando-lhe o peito. Era um andarilho, um errante ou, segundo o gosto burocrático dos franceses por acrônimos, um SDF, um sans domicile fixe.

O trem se aproximava, finalmente. Dirigi-me ao último vagão, e instalei-me perto da porta. Estava vazio. Olhava pela janela a cada instante, aterrorizado pela possibilidade de surgir um controlador e me expulsar do trem; seguramente morreria de frio naquela estação deserta.

Pouco antes do fechamento das portas, o homem do cigarro entrou no vagão e sentou a duas fileiras da minha, do outro lado do corredor, de frente para mim. Ele me encarava inquisitivo; eu tentei desviar-me de seu olhar procurando meu walkman na mochila. Apertei os fones em meus ouvidos e pus-me a escutar Crystal Silence em loop. Geralmente essa música me bastava para entrar em estado melancólico induzido. Mas ali, diante do olhar daquele senhor e da fragilidade de minha situação, não conseguia encontrar minha calma, nem tampouco pensar em Ulrika, meu amor, meu destino, meu terminus.

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